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O uso da guarda compartilhada como instrumento de perpetuação da violência contra a mulher

  • Foto do escritor: Dr. Lucas Rosado
    Dr. Lucas Rosado
  • 10 de jul.
  • 7 min de leitura
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Só uma mulher que já foi vítima de violência doméstica sabe o que é se sentir angustiada todos os dias com medo de ser agredida novamente por seu ofensor. Muitas pessoas não sabem, mas a violência doméstica conceituada pela Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não ocorre apenas com a agressão física do ofensor em relação à ofendida, mas de diversas formas. O artigo 7º da referida lei nos traz todas as formas de violência contra a mulher:


Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;             
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

A violência psicológica contra a mulher, na maioria das vezes, se dá de forma velada e indireta, através de condutas que tiram a paz e a tranquilidade da ofendida, prejudicando seu estado emocional para causar angústia, medo, estresse e sofrimento. Temos como exemplos dessas condutas a realização de ameaças veladas, chantagem emocional e a promoção de discussões desnecessárias e infrutíferas, tudo para desestabilizar o estado psicológico da mulher. E muitas vezes essa violência psicológica ocorre no âmbito do próprio Direito de Família, embaixo do nariz de muitos Magistrados, disfarçada de ''direito de petição'' do agressor em relação a institutos do direito familiar como guarda, alimentos, entre outros. No presente artigo, pretendo demonstrar como o instituto da guarda compartilhada pode ser utilizado por um agressor de mulheres para dar continuidade a uma situação de violência doméstica a uma vítima. E antes que os defensores de plantão da guarda compartilhada se levantem para me crucificar por essa afirmação, permitam-me que eu me explique. Não sou contra a guarda compartilhada, pois, em meu entendimento pessoal, é um instituto que funciona e pode ser aplicado em algumas ocasiões e cenários, e não de forma generalizada, principalmente em situações nas quais já houve violência doméstica no passado.


Este artigo tem como objetivo refletir criticamente sobre a distorção do instituto, sem negar os benefícios da guarda compartilhada, mas alertando para seu uso abusivo por agressores que se valem da proximidade obrigatória com a ex-companheira para continuar exercendo controle, sofrimento e medo. No ordenamento jurídico brasileiro, a guarda é o instituto que define a responsabilidade sobre os cuidados, a educação e a convivência de filhos menores após a separação dos genitores. O Código Civil, em seu artigo 1.583, estabelece duas formas principais de guarda: a guarda unilateral, atribuída a um dos genitores (ou a terceiro), e a guarda compartilhada, na qual ambos os pais participam ativamente das decisões relativas à vida do filho. O parágrafo §1º do mesmo artigo conceitua a guarda unilateral como a atribuída a apenas um dos genitores, incumbido das decisões e do cotidiano da criança, cabendo ao outro apenas o direito de visitas e o dever de supervisionar. Já a guarda compartilhada, prevista no §2º, pressupõe a divisão de responsabilidades e decisões, mesmo que a criança resida com apenas um dos pais.


Desde o advento da Lei nº 13.058/2014, a guarda compartilhada passou a ser a regra geral, inclusive nos casos em que não há consenso entre os pais. Assim dispõe o §2º do artigo 1.584 do Código Civil:


Art. 1.584.  A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).

I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).

II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).

(...)

§2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.   

A efetividade da guarda compartilhada exige cooperação, diálogo e respeito mútuo entre os pais. Em contextos de separação amigável ou de relacionamento civilizado entre os genitores, a guarda compartilhada pode ser extremamente benéfica para a prole. Mas quando há um histórico de violência doméstica, psicológica ou patrimonial, essa convivência obrigatória se torna um campo fértil para a perpetuação da violência. Note, caro leitor, que o dispositivo legal mencionado acima excepciona a aplicação geral da guarda compartilhada nos casos em que houver probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar. Contudo, na prática, muitos Magistrados partem do pressuposto de que se não há mais medida protetiva vigente, ou se o inquérito que investigou crime relacionado à violência doméstica já tiver sido arquivado, não há mais risco de violência doméstica no caso, sendo que não é assim que funciona na realidade.


Depois da primeira denúncia o agressor passa a ser mais cuidadoso para que suas ações não sejam intepretadas como atos de violência doméstica, começando a fazer isso de forma velada. O agressor começa a se valer de seu direito enquanto genitor para ajuizar ações que visam a discussão sobre modalidade de guarda (sem nunca antes ter externado qualquer desejo ou vontade de compartilhar ou assumir a guarda do menor), pensão alimentícia (geralmente oferecendo valores ridiculamente baixos) e até mesmo acusações falsas de alienação parental. Infelizmente, é comum que agressores utilizem os próprios filhos como instrumento de vingança, intimidação e controle contra a mulher que conseguiram agredir fisicamente, emocionalmente ou economicamente durante o relacionamento. A separação formal do casal não representa, nesses casos, o fim da violência, mas apenas sua transfiguração. É cada vez mais comum nos depararmos com situações nas quais os genitores exigem a guarda compartilhada apenas para manter um canal de contato constante com a ex-companheira, utilizando visitas, decisões escolares, médicas ou de rotina para reencenar a relação de poder, chantagem e sofrimento.


A imposição da guarda compartilhada em situações onde há histórico de violência transforma o que deveria ser uma responsabilidade parental em um mecanismo de violência institucionalizada e contínua. A mulher passa a ser obrigada a manter contato com o agressor, a dividir decisões com ele (nas quais, quase sempre, ele vai discordar da genitora apenas para contrariá-la) e a sofrer interferências em sua rotina e nas decisões sobre os filhos. E o agressor, sabendo que sua interferência retira a paz da ex-companheira, começa a se utilizar da autoridade parental para promover conflitos e discussões infrutíferas, tudo no intuito de elevar o nível de estresse da genitora para causar sofrimento. As motivações podem ser diversas, mas na maioria dos casos isso acontece quando já houve uma denúncia prévia de violência doméstica, sendo que o agressor se utiliza dessa prática para se vingar. Nesses casos, a guarda compartilhada deixa de ser um benefício para a criança e passa a ser mais uma forma de revitimização da mulher, configurando violência psicológica.


Essa realidade tem reflexos diretos no sistema judiciário, que se vê abarrotado por ações revisionais de guarda, pedidos de modificação de regime, embates intermináveis sobre decisões banais do dia-a-dia da criança, alienações parentais forjadas como estratégia de defesa e, em muitos casos, até representações falsas contra as mulheres. É uma sobrecarga que desvia o foco do Judiciário e afasta o debate do que realmente importa: a segurança e o bem-estar da criança e da mãe. Diante dessa complexidade, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), surge como ferramenta essencial para orientar a Magistratura sobre os impactos da desigualdade de gênero nos litígios familiares. Esse protocolo recomenda que Juízes analisem, com sensibilidade e fundamentação técnica, as dinâmicas de poder envolvidas nas relações familiares, especialmente em processos que envolvem guarda, visitas e decisões parentais. O uso da guarda compartilhada como instrumento de controle e intimidação, mesmo que velado, deve ser reconhecido e coibido, sob pena de o Poder Judiciário legitimar e perpetuar a violência de gênero por meio de suas próprias decisões.


A guarda compartilhada, embora juridicamente louvável, não é solução universal. Quando aplicada de forma automática e insensível em casos de violência doméstica, transforma-se em arma contra quem deveria ser protegida. É necessário que operadores do Direito, especialmente o Poder Judiciário, estejam atentos às nuances desses conflitos e ajam com responsabilidade e perspectiva de gênero. Para as mulheres que enfrentam essa realidade, o silêncio não deve ser uma opção, pois é preciso reconhecer que a violência pode continuar mesmo após o fim do relacionamento, travestida de direito parental. É inadmissível e impraticável que o Judiciário compactue com essa prática por parte de agressores de mulheres, permitindo que os mesmos se utilizem de instrumentos processuais para praticar violência. Portanto, a fixação da guarda de um menor, especial e principalmente em casos nos quais há histórico de violência doméstica, merece uma atenção especial e um olhar sensível à genitora, de maneira que se evite a inserção dela em um ciclo interminável de violência e chantagem.

 
 
 

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