A teoria do punitive damage, decorrente do Direito Norte Americano, consiste em atribuir um caráter punitivo-pedagógico à indenização por danos morais a ser paga pelo causador do dano condenado em ação judicial ajuizada para esse fim. O intuito é fazer com que o causador do dano arque com o pagamento de uma quantia elevada, visando assim não apenas a reparação do dano que a parte sofreu, mas também a aplicação de uma espécie de ''punição'' com efeito de desestimular a conduta ilícita da qual decorreu esse dano.
Não é muito difícil nos depararmos, vez ou outra, com matérias que noticiam, por exemplo, condenações a indenizações de U$ 100.000,00 (cem mil dólares) em favor de pessoas que sofreram quedas em shoppings porque não havia sinalização de piso molhado, ou então de indenizações na casa do milhão de dólares por publicações jornalísticas que, de alguma forma, ofenderam a reputação de alguém.
Em um primeiro momento, o valor dessas indenizações pode causar uma certa perplexidade para nós, brasileiros, acostumados com um sistema jurídico que, quando não invoca o ''mero aborrecimento'' para obstar o reconhecimento do dano moral, fixa condenações em valores que são, na maioria das vezes, ínfimos se comparados à extensão do dano causado. Mas esse sentimento de estranheza é normal diante das particularidades que o sistema jurídico brasileiro apresenta, as quais o diferem do sistema Norte Americano. De início, um fator que já demonstra clara diferença entre os sistemas, é que o nosso ordenamento jurídico foi construído com base na doutrina do civil law, decorrente do Direito Romano e adotada na grande maioria dos países europeus, enquanto o ordenamento jurídico do sistema Norte Americano foi baseado na doutrina do common law.
A doutrina do civil law parte da premissa de que o ordenamento jurídico deve contar com um compilado de leis escritas (Código Civil, Código Penal, etc), as quais possuem mais peso do que as decisões proferidas em julgamentos anteriores. Diferentemente dessa corrente, o common law preceitua que o Direito é construído com base nas decisões proferidas anteriormente pelos tribunais, adequadas a cada caso (jurisprudência). Para simplificar, o common law atribui relevância maior às decisões e ao entendimento exarado pelos tribunais em casos anteriores, enquanto o civil law confere maior importância ao texto legal propriamente escrito.
Contudo, em que pese haver grande diferença na estrutura dos dois sistemas, isso não significa que é impossível o compartilhamento entre eles na aplicação dos institutos particulares de cada um, desde que esse instituto funcione em harmonia com o ordenamento do sistema no qual será aplicado. Dessa forma, o reconhecimento da utilização do punitive damage como ferramenta jurídica em nosso sistema está condicionado ao expresso amparo legal, uma vez que, por influência do civil law, o ordenamento jurídico confere prevalência às leis escritas.
E esse amparo legal existe, pois o direito à reparação do dano moral está positivado em nossa Constituição Federal (artigo 5º, inciso V), e é regulado em nosso Código Civil (artigos 186 e 927). Assim, o sistema jurídico brasileiro possui base legal para aplicação do instituto estrangeiro, não havendo nenhum óbice no seu reconhecimento. O grande problema é que, em virtude do elevado valor das indenizações, a aplicação do punitive damage pode acabar esbarrando na obstaculização formada pelo chamado ''enriquecimento ilícito''.
O enriquecimento ilícito, ou enriquecimento sem causa, encontra-se disposto no artigo 884 de nosso Código Civil:
(...)
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
(...)
Assim, o artigo 884 do CC proíbe que haja enriquecimento sem causa às custas de terceiros. E essa disposição legal normalmente é invocada para obstar a fixação de indenizações em grandes valores, que é justamente o ponto central da teoria do punitive damage, pois o elevado montante ao qual o causador do dano é condenado possui o condão de fazer com que ele sinta de fato os efeitos da reparação do dano.
E por que isso ?
Porque infelizmente a maneira mais efetiva de se aplicar uma medida pedagógica no sentido de desestimular o causador do dano a reincidir em suas condutas ilícitas é fazê-lo sentir o peso no bolso, isto é, causando-lhe um impacto financeiro considerável.
Tenhamos em mente o seguinte exemplo: Um consumidor realiza uma compra em uma loja e efetua devidamente o pagamento. Dias depois, a loja em que o consumidor realizou a compra cobra-lhe o valor do produto adquirido como se ele não tivesse pagado. O consumidor responde que já pagou o valor e apresenta devidamente o comprovante de pagamento, e mesmo assim a loja, agindo de má-fé, continua lhe cobrando até finalmente inserir seu nome nos cadastros de proteção ao crédito pela compra supostamente não paga. Note-se que o exemplo hipotético aqui mencionado trata-se de uma inclusão indevida do nome do consumidor no cadastro de proteção ao crédito, a qual lhe causa embaraços na vida financeira, acarretando assim em um dano moral diante do constrangimento e da humilhação por ter tido o nome sujo indevidamente.
Nessa situação, poderíamos considerar 02 (dois) panoramas de julgamento, Um adotando os critérios estabelecidos pelo punitive damage, e o outro pelos critérios da proibição de enriquecimento ilícito. Ao adotar os critérios do punitive damage, a loja que cobrou o consumidor em duplicidade, e ainda inseriu seu nome indevidamente nos cadastros de proteção ao crédito, sofreria uma condenação por danos morais em valor considerável, como por exemplo R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), sendo que essa condenação acarretaria impacto no faturamento e nas receitas da loja. Logo, em consequência desse impacto, a loja passará a repensar suas condutas, de forma a evitar que isso se repita e acarrete-lhe novamente em uma outra condenação em valor semelhante.
Já ao apreciarmos a demanda sob o manto da proibição do enriquecimento sem causa, teríamos provavelmente uma condenação da loja em um valor inferior a 02 (dois) salários mínimos, o que não lhe causaria impacto financeiro, fazendo com que a empresa desse continuidade a essa prática de cobrar indevidamente seus clientes e inserir-lhes o nome nos cadastros de proteção ao crédito, pois para ela seria mais interessante lesar o consumidor e arcar com o pagamento de uma indenização mínima caso a demanda fosse submetida ao Judiciário.
Daí vem a importância de pensarmos no punitive damage como uma medida efetivamente corretiva e utilizada para desestimular o causador de um dano de incorrer em uma conduta ilícita novamente. Como o próprio nome do instituto sugere, a condenação a uma indenização de valor elevado é uma punição pelo dano causado. Infelizmente, enquanto a jurisprudência pátria continuar se utilizando do ''enriquecimento ilícito'' para obstar a aplicação efetiva de um dano punitivo, os causadores desse dano, que, em sua maioria, são empresas de grande porte, possuidoras de uma quantia gigantesca de recursos, optarão por continuar adotando práticas lesivas, uma vez que o custo de uma eventual condenação poderá facilmente ser coberto em relação aos ganhos que se teve.
Há de se ter em mente que o instituto do punitive damage não pode ser confundido com enriquecimento sem causa, pois o papel do dano punitivo é justamente o de fixar uma indenização de peso em desfavor do ofensor, sendo que tal medida não surtiria efeito caso esses valores fossem ínfimos. Contudo, se ainda persistir a idéia de que o indivíduo que sofreu o dano estaria ''enriquecendo de forma ilícita'' com tal indenização, uma possível solução para essa problemática seria, por exemplo, dividir o valor dessa indenização elevada em percentuais, sendo que uma parte seria destinada à parte lesada, e a outra poderia ser destinada à composição de fundos específicos de interesse público ou entidades que prestam serviços de relevância social, como orfanatos, asilos, ONGs, ou semelhantes.
Para que a jurisprudência majoritária mude no sentido de conferir um reconhecimento maior ao punitive damage, é necessário que não nos abstenhamos de recorrer ao Judiciário quando lesados por alguém, seja ela uma pessoa física ou jurídica. Nunca deixe de buscar os seus direitos, principalmente no âmbito da responsabilização civil, pelos danos que possam ser efetivamente demonstrados, pois a dor, a aflição e sofrimento causado pela conduta ilícita do ofensor jamais podem ser consideradas ''mero aborrecimento'' como é dito em alguns julgados.
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